“A alegria de ser chamado a servir a Deus, levando o seu
amor às pessoas e a todos os povos (cf. AG 10), ninguém pode arrancar do
coração de quem exerce uma missão que tem sua base e motivação no Evangelho”. É
com esta declaração que Dom Erwin Kräutler, bispo do Xingu, resume sua atuação
no Brasil há mais de 40 anos, evangelizando sua comunidade. Nesta caminhada,
ele esteve engajado em diversas causas, entre elas, a mais recente, em oposição
à construção da hidrelétrica de
Belo
Monte. “Como bispo tenho que conviver com diversos pontos de vista e
tolerar, às vezes mesmo a contragosto, posições opostas à minha. Em momento
algum isso significa abrir mão do credo que professo e da posição contra Belo
Monte que sempre assumi e continuo sustentando, considerando-o uma insanidade.
Infelizmente não existe meio termo. Belo Monte é de todo inaceitável e ilegal e
nunca deixa de ser”, disse o bispo à IHU On-Line.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Dom Erwin comenta a atual
situação de Altamira desde a construção da hidrelétrica de Belo Monte e acentua
o comportamento dos povos indígenas que vivem próximos ao canteiro de obras.
“Aí se percebe nitidamente que a Norte Energia usa de todos os meios para calar
os indígenas e impedir que se manifestem. Recebem cestas básicas, voadeiras,
combustível, benefícios que nunca imaginaram. Como explicar-lhes que esses
presentes são um cavalo de Troia e aceitá-los significa dar um tiro no próprio
pé?”, questiona.
Ele conta que após a eleição de
Dilma
tentou agendar uma reunião com a presidente, mas ao ouvir o discurso de Gilberto
Carvalho, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, a
favor de Belo Monte, desmarcou o encontro. “O que ainda iria fazer no gabinete
do ministro? Trocar amenidades e posar para fotos? Já que a declaração do
ministro revelou toda a intransigência do governo, eu mesmo cancelei a
audiência”, lamenta.
Há dois anos de tornar-se bispo emérito, Dom Erwin diz que isso “não significa
‘entregar os pontos’. Meu empenho em favor da dignidade e dos direitos dos
povos indígenas, dos ribeirinhos, das mulheres, das crianças, dos jovens, dos
expulsos de casa e terra, dos agredidos e machucados, enfim, de todos os
‘excluídos do banquete da vida’ e minha defesa do meio ambiente, o ‘lar’ que
Deus criou para todos nós, vão continuar enquanto Deus me der o fôlego”.
Dom
Erwin Kräutler (foto abaixo) é bispo de Altamira, no Pará, e presidente do
Conselho Indigenista Missioneiro – CIMI.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que avaliação faz da caminhada de luta em oposição a Belo Monte e
aos projetos de infraestrutura na Amazônia durante os últimos anos?
Dom Erwin Kräutler – Por ocasião da Conferência das Nações Unidas sobre
Desenvolvimento Sustentável, Rio+20, o movimento
Xingu
Vivo para Sempre convocou indígenas, pescadores, ribeirinhos, movimentos
sociais, estudantes e acadêmicos, ativistas e defensores do Xingu para
comemorar os 23 anos que se passaram desde o Primeiro Encontro dos Povos
Indígenas do Xingu (20 a 25 de fevereiro de 1989) em Altamira. O evento foi
chamado de “Xingu+23“ em analogia ao “Rio+20“ e quis lembrar a primeira grande
vitória contra o projeto de barramento do rio Xingu que naquele tempo levou o
nome de Kararaô, um grito de guerra do povo Kayapó, o povo indígena mais
numeroso do Xingu. Na realidade, a luta contra o projeto é bem mais antiga e
começou já nos anos 1970 quando os militares cogitaram a construção de seis grandes
usinas ao longo do rio Xingu: Jarina, Kokraimoro, Ipixuna, Babaquara, Kararaô e
Iriri. O Encontro dos Povos Indígenas em 1989 tornou a rejeição do projeto da
parte dos indígenas apenas mais visível e chamou a atenção do Brasil e da
comunidade internacional para o planejado golpe no coração da Amazônia.
Ironia da história
Ironia da história:
Lula,
que elegemos porque acreditávamos que outro Brasil fosse possível, pouco depois
de tomar posse tirou o projeto das gavetas, desconsiderando o que durante a
campanha eleitoral havia falado nos palanques sobre a Amazônia. Passou a
defender o que antes severamente criticou e a considerar o projeto hidrelétrico
no Xingu essencial para o progresso, vaticinando o colapso total da economia do
país caso não seja concretizado. Substituiu-se apenas o nome de Kararaô por Belo
Monte para ninguém mais lembrar o facão da Tuíra e os índios de 1989 pintados
de urucum e jenipapo.
Não acredito que haja no Brasil outro movimento de luta em defesa do meio
ambiente contra um megaprojeto governamental com uma história tão longa. Alguém
talvez venha retrucar: “Mas, infelizmente, lutaram em vão, já que o projeto
está sendo executado a pleno vapor e, depois de já ter gasto bilhões de reais,
dificilmente o governo vai recuar!“ De fato, a cada dia que passa mais
explosões ensurdecedoras atormentam a população no entorno do canteiro de
obras. A cada dia que passa mais destruição se alastra pela região. A
ensecadeira se estende rio adentro e o desmatamento avança nas ilhas e na terra
firme da Volta Grande do Xingu. Mas, mesmo assim, nada de enrolar a bandeira!
Sabemos que Belo Monte não é a única barragem planejada no Xingu. Nossa luta
tem também por objetivo evitar que o antigo projeto dos militares seja
desenterrado na sua totalidade.
Quantos cientistas e especialistas não alertaram o governo que o Xingu durante
três ou quatro meses no ano não terá o volume d’água suficiente para rodar uma
única turbina sequer? Muitos! E todo mundo sabe que é economicamente absurdo
deixar sem funcionar as turbinas que são a parte mais cara de todo o empreendimento.
A solução reside em mais barramentos rio acima como já foi previsto no projeto
dos militares, com impactos mais desastrosos ainda que a própria
Usina
Hidrelétrica de Belo Monte. Esse projeto de mais barragens é tratado como
segredo de estado. Habilmente se evita toda a discussão em torno deste espectro
que então sacrificará todo o rio Xingu com consequências não só para Altamira
mas também para todas as vilas ribeirinhas e áreas indígenas nas margens do
rio, chegando a atingir até a cidade de São Félix do Xingu.
Cruzar os braços
Outro motivo de não cruzarmos os braços são os mais de cinquenta (50!)
processos que correm na Justiça brasileira e internacional denunciando
violações da Constituição Federal e de tratados internacionais de que o Brasil
é signatário. São ações movidas pelo Ministério Público Federal, pela
Defensoria Pública Estadual do Pará como por entidades da sociedade civil,
entre estas o Conselho Indigenista Missionário – CIMI, organismo vinculado à CNBB.
Estes processos estão, em parte há anos, sem a Justiça tomar nenhuma
providência. Quais são os reais motivos desta morosidade? Omissão ou negligência
são inaceitáveis num Estado que se diz democrático e de Direito.
Finalmente, enquanto não forem cumpridas todas – todas mesmo! – condicionantes
exigidas pelo Ibama e pela Funai como requisitos para dar início à construção
de Belo Monte, não deixaremos de denunciar a ilegalidade da obra.
IHU On-Line – Quais as principais alegrias e desafios de ser um líder religioso
em uma região como a do Xingu, onde a comunidade e a Igreja estão divididas por
causa de Belo Monte?
Dom Erwin Kräutler – A alegria de ser chamado a servir a Deus, levando o seu
amor às pessoas e a todos os povos (cf. Ad Gentes 10), ninguém pode arrancar do
coração de quem exerce uma missão que tem sua base e motivação no Evangelho.
Esta missão não se restringe a um mero anúncio de verdades. Evangelizar implica
primeiramente no testemunho de uma fé arraigada na Palavra de Deus e na
convicção de que esse mesmo Deus é um Deus que anda conosco pelas estradas e
rios de nossa vida. Evangelizar é estar continuamente a serviço deste Deus,
consagrando a vida a Ele e a seu Povo, e isso sem medir esforços e alegar
cansaço. “Amou-os até o fim” lemos no Evangelho de São João para introduzir o
episódio do lava-pés (Jo 13,1).
Evangelizar
não exclui o diálogo aberto, franco, respeitoso. Um monólogo autoritário é
antievangélico quando tenta arrasar com quem tem outra visão do mundo e
condenar ao inferno a quem não reza pela nossa cartilha. Como bispo tenho que
conviver com diversos pontos de vista e tolerar, às vezes mesmo a contragosto,
posições opostas à minha. Em momento algum isso significa abrir mão do credo
que professo e da posição contra Belo Monte que sempre assumi e continuo
sustentando, considerando-o uma insanidade. Infelizmente não existe meio termo.
Belo Monte é de todo inaceitável e ilegal e nunca deixa de ser. A decisão
tomada pelos governos Lula e Dilma de construir Belo Monte é imperdoável porque
nunca haverá uma chance mínima de reparar os erros monstruosos cometidos. Ao
inaugurar Belo Monte teremos alcançado um ponto sem retorno. Em outras
palavras: não adiantará mais chorar o leite derramado.
O cenário mudou
A Igreja, como o povo do Xingu em geral, está dividida na avaliação de Belo
Monte. No entanto, os que defendem o projeto já não estão mais tão eufóricos
como anos atrás quando colaram adesivos “
Queremos
Belo Monte” em seus carros. Os adesivos desapareceram. Os que aprovam o
projeto, o fazem hoje com reservas e muitas exigências. Os políticos há tempo
desceram de seus palanques porque esgotaram os argumentos bombásticos em favor
do “progresso” que só Belo Monte seria capaz de trazer para a região. Ensacaram
a viola. Aliás Belo Monte nem sequer foi tema nos comícios da última campanha
eleitoral. Os candidatos bem sabiam por que evitaram falar em Belo Monte. Iriam
levar estrondosas vaias. Incrível com que rapidez o cenário mudou. A tendência
é que, na medida em que a obra avança, o povo está se dando conta de que, até
agora, nada ou muito pouco do que foi prometido está sendo cumprido. Altamira,
uma cidade de mais de 120 mil habitantes, está mergulhado num tremendo caos. Os
operários contratados pela empresa CCBM logicamente apreciam ter encontrado
emprego, se bem que seja temporário. Mesmo assim há frequentes manifestações de
insatisfação. Há até operário preso. Com toda razão exigem melhores condições
de trabalho e salários que permitam enfrentar a inadmissível carestia que
impera em Altamira.
As feições do povo que frequenta as Igrejas em Altamira mudaram. Entre as (os)
fiéis tradicionais aparecem muitos rostos novos. São homens e mulheres, casais
e famílias, que vieram de outros estados e trabalham nas empresas ligadas à
construção de Belo Monte. Querem participar das celebrações e iniciativas de
sua Igreja e tem todo o direito de fazê-lo, mas é óbvio que não se manifestam
contra Belo Monte ou criticam o projeto, pois provavelmente correriam o risco
de perder o emprego.
Inalterado, também dentro da Igreja, ficou o grupo que categoricamente rejeita Belo
Monte. Embora sejam poucas pessoas em relação à grande massa que é indecisa e
opta por uma posição de aguardar “para ver como é que fica“, essa parcela do
Povo de Deus mais ativa e combatente não se deixa intimidar nem por ameaças,
nem por calúnias, difamações e outros tipos de perseguição.
IHU On-Line – Irmã
Ignez
Wenzel comentou sobre a desarticulação entre as comunidades indígenas por
conta das obras. Quais são as razões desse comportamento? Pesquisadores,
antropólogos e religiosos estão mais preocupados com a questão indígena do que
os próprios índios?
Dom Erwin Kräutler – A questão é complexa. É perigoso generalizar, afirmando
que os indígenas estão menos preocupados. Do mesmo jeito como em toda a
sociedade do Xingu (do Brasil e do mundo), há também entre os indígenas
diferentes posições em relação a
Belo
Monte. Religiosos, antropólogos, professores e outros profissionais
conhecem talvez melhor os meandros e as propostas insidiosas do sistema
neoliberal que está na base do “desenvolvimentismo” que confunde
desenvolvimento com crescimento meramente econômico, multiplicação de riqueza
material, incremento do PIB, expansão do agronegócio, aumento de produção de
biocombustíveis. Os indicadores sociais são colocados em um plano inferior. A
defesa do meio ambiente não passa de recheio nos discursos da presidente em
Brasília para impressionar quando fala na ONU e em outras oportunidades no
exterior como há poucos dias em Paris.
Essa realidade os indígenas, pelo menos os velhos caciques, certamente nunca
estudaram e por isso não se dão conta do perigo que correm. No sistema vigente,
o que importa é produzir, lucrar, tirar vantagem, consumir. O “ter“ triunfa
sobre o “ser“. Esse sistema é cruel e diametralmente oposto ao que os indígenas
andinos chamam de
Sumak
Kawsay (ou “Bem Viver“). É um câncer que dissemina metástases em todo o
tecido social. E é uma ilusão pensar que os povos indígenas sejam imunes contra
este câncer. Todo o nosso empenho e acompanhamento visam ajudá-los a evitar a
contaminação.
Posições
Os Kayapó do Alto Xingu, sob a liderança do cacique-patriarca Raoni Metuktire,
rejeitam qualquer barragem do rio. É para eles uma questão fechada. Só que Belo
Monte é geograficamente muito distante de suas aldeias e essas, na primeira
fase da construção do complexo hidrelétrico do Xingu, não serão impactadas
diretamente. Por isso os Kayapó do Alto Xingu não mais se manifestaram de modo
tão contundente como antes o fizeram quando Raoni mesmo veio a Altamira para
prestigiar eventos contra Belo Monte.
Outra é a situação dos povos que vivem mais próximos ao canteiro de obras. Aí
se percebe nitidamente que a
Norte
Energia usa de todos os meios para calar os indígenas e impedir que se
manifestem. Recebem cestas básicas, voadeiras, combustível, benefícios que
nunca imaginaram. Como explicar-lhes que esses presentes são um cavalo de Troia
e aceitá-los significa dar um um tiro no próprio pé? Quem antes foi tratado
como pária e de repente avança para padrões de príncipe, dificilmente entende
uma advertência de que essas regalias são prejudiciais a ele e a seu povo. Na
realidade, o dinheiro fácil corrói a sociedade indígena, corrompe lideranças,
destrói a organização interna de um povo, faz os índios perder a sua
identidade. Tem sistema atrás disso. Quando os indígenas “deixam de ser
indígenas“ perdem também suas terras ancestrais, cobiçadas desde sempre pelas
mineradoras, pelos madeireiros e latifundiários. Chamo essa investida contra os
índios de “auricídio“ (do latim aurum: ouro). Matam-se os indígenas com
dinheiro, entopem-se-lhes as gargantas com dinheiro a ponto de não mais poderem
gritar, implanta-se um consumismo desenfreado no seio das comunidades e
exterminam-se deliberadamente os valores e a sabedoria milenar de um povo. E o
pior é que se afirma em alto e bom som que tudo é feito “em favor dos índios
para tirá-los finalmente da era da pedra lascada“. Através do dinheiro se tenta
ressuscitar os parâmetros das antigas constituições brasileiras que defendiam
“a incorporação dos silvícolas à comunhão nacional“, programa etnocida que
achávamos definitivamente superado com a Constituição de 1988.
IHU On-Line – O senhor voltou a dialogar com o governo na tentativa de
paralisar Belo Monte? Como vê, nesse sentido, a atuação do Ministério Público
Federal, que por vezes determina a paralisação da obra?
Dom Erwin Kräutler – Já em outubro 2009 percebi que o presidente Lula, embora
tenha insistido em continuar o que chamou de diálogo, na realidade não estava
nada interessado em discutir Belo Monte. Aliás o “diálogo“ de que ele falou não
passou de encenação. Tentei ainda um encontro com a Dilma. Fui informado que Gilberto
Carvalho, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República,
estaria disposto a receber-me em audiência. Mas poucos dias antes da data
marcada para a audiência ele discursou num encontro das pastorais sociais da CNBB
e declarou que Belo Monte era irreversível e irrevogável. O que ainda iria
fazer no gabinete do ministro? Trocar amenidades e posar para fotos? Já que a
declaração do ministro revelou toda a intransigência do governo, eu mesmo
cancelei a audiência.
E o papel do Ministério Público Federal? Das 15 ações judiciais contra
ilegalidades no licenciamento da construção de Belo Monte, encaminhadas pelo
Ministério Público Federal, apenas uma transitou em julgado. Este balanço
revela a “importância“ que é dada hoje a este órgão de defesa dos direitos
constitucionais do cidadão. Às vezes me dá até dó ver o esforço de nossos
Procuradores da República. Será que não se sentem supérfluos e inúteis dentro
do poder Judiciário, que não aprecia o seu empenho, engavetando
sistematicamente as ações elaboradas com esmero e competência?
IHU On-Line – Como o senhor vê a discussão acerca da mineração no Norte e
Nordeste? É possível dizer que Belo Monte servirá para facilitar a mineração?
Dom Erwin Kräutler – Respondo com a pesquisadora
Telma
Monteiro, que colabora com o Xingu Vivo para Sempre e quem estimo muito.
Num artigo publicado no Correio da Cidadania (11-09-2012) ela adverte que “a implantação
do projeto da hidrelétrica Belo Monte é a forma de viabilizar definitivamente a
mineração em terras indígenas e em áreas que as circundam, em particular na
Volta Grande, trecho de mais de 100 quilômetros que vai praticamente secar com
o desvio das águas do Xingu. E é justamente nas proximidades do barramento
principal, no sítio Pimental, que está sendo montado o maior projeto de
exploração de ouro do Brasil, que vai aproveitar o fato de que a Volta Grande
ficará seca por meses a fio com o desvio das águas do rio Xingu“. Critica
ainda: “Incrível como, além das hidrelétricas, os projetos de mineração, na
visão do governo federal e do governo do Pará, também se tornaram a panaceia
para solucionar todos os problemas não resolvidos de desenvolvimento social.
Papel que seria obrigação do Estado, com o dinheiro dos impostos pago pelos
cidadãos de bem“. Sempre o mesmo lero-lero que já estamos cansados de ouvir: os
problemas sociais da Amazônia só poderão ser solucionados se, de mão beijada, a
lotearmos e entregarmos lote por lote a empresas estrangeiras. Desta vez a
felizarda é a
Belo
Sun Mining Corporation com sede em Toronto, Canadá, que em breve auferirá
lucros astronômicos rindo da cara dos brasileiros. E ainda há quem brada que a
“Amazônia é nossa“ e repete o discurso de Lula em 2007: “Precisamos dizer que
somos os donos da Amazônia e que sabemos cuidar das nossas florestas, da nossa
água, não precisa ninguém dar palpite”. Quem são realmente os donos? Sabemos
realmente cuidar das nossas florestas, da nossa água? Não seria mais correto
chorar desde já a mãe Amazônia pois ela foi vendida ao grande capital para ser
violentada sem escrúpulos até morrer de inanição!
IHU On-Line – Daqui dois anos o senhor enviará ao Papa o pedido de renúncia,
conforme denomina o Direito Canônico. O senhor já faz planos para os próximos
anos? Pretende continuar na região do Xingu?
Dom Erwin Kräutler – O Cânone 401 § 1 do Direito Canônico reza que o bispo “que
tiver completado setenta e cinco anos de idade, é solicitado a apresentar a
renúncia do ofício ao Sumo Pontífice, que, ponderando todas as circunstâncias,
tomará providências“. Em outra palavras: é o Papa que decide se aceita logo a
renúncia ou se pede ao bispo continuar por mais algum tempo. Não fiz nenhum
plano para “o dia seguinte“, mas tornar-se bispo “emérito“, logicamente não
significa “entregar os pontos“. Meu empenho em favor da dignidade e dos
direitos
dos povos indígenas, dos ribeirinhos, das mulheres, das crianças, dos
jovens, dos expulsos de casa e terra, dos agredidos e machucados, enfim, de
todos os “excluídos do banquete da vida“ e minha defesa do meio ambiente, o
“lar“ que Deus criou para todos nós, vão continuar enquanto Deus me der o
fôlego.
IHU On-Line – Como é para o senhor viver no Brasil, especialmente num estado em
que há milhares de problemas sociais, ambientais, numa conjuntura completamente
diferente da sua origem?
Dom Erwin Kräutler – Cheguei a
Altamira
em dezembro de 1965, ainda jovem. A decisão pelo Xingu foi uma decisão pessoal.
Os superiores religiosos apenas concordaram e me deram luz verde. Jamais me
arrependi de ter feito esta opção. O Xingu tornou-se minha terra, o chão em que
vivo a minha vida. Não nego as minhas raízes e não deixei de amar o país da
minha família e de meus antepassados, mas nunca cultivei saudosismos para com a
terra onde nasci, avaliando o que na Áustria estaria melhor ou analisando a
conjuntura de lá, comparando-a com os problemas que aqui enfrentamos.
Tempos atrás redigi uma mensagem que muitas vezes já foi usada em celebrações
de envio de missionárias e missionários. Esse texto traduz o que ser
missionário sempre significou para mim:
“Vai meu irmão, minha irmã! Lá, em tua nova missão, em tua nova terra, em tua
nova pátria, anunciarás Jesus Cristo e o seu Evangelho. Servirás aos pobres,
aos excluídos do banquete da vida, lavando-lhes os pés. Falarás com quem nunca
andou ou não anda mais conosco.
Aproximar-te-ás com muito carinho a um povo com cultura e tradições diferentes.
Chegando lá, estranharás, sem dúvida, os costumes e usos locais. Mas, não
imporás as tuas ideias! Não apresentarás o país que te viu nascer como paraíso!
Não dirás nunca que no lugar onde te criaste, as coisas estão bem melhores!
Não darás nunca a impressão de que vieste para ensinar, para civilizar, para
instruir, para colonizar! Jamais violentarás a alma do povo que, doravante,
será o teu povo!
Oferecerás simplesmente o testemunho de tua fé, de tua esperança e de teu amor,
e darás a tua vida até o fim, até as últimas consequências! Assim, tu terás o
privilégio e a felicidade de viver a graça de todas as graças: encontrarás o
Senhor que disse: 'Depois que eu ressuscitar, irei à vossa frente para a
Galileia' (Mc 14,28). Missão é sempre ir à Galileia, às Galileias de todos os
continentes!“
IHU On-Line – Depois de todos esses anos na região, qual foi a luta mais
difícil na sua trajetória?
Dom Erwin Kräutler – Sempre lembro com carinho nosso empenho em 1987-1988
durante a Assembleia Nacional Constituinte para que os direitos indígenas
fossem inscritos na Constituição da República. Foi uma luta sem tréguas, mas os
povos indígenas e nós, os seus aliados, saímos vitoriosos. Para quem quiser
conferir, há um capítulo específico na
Carta
Magna do País que fala “Dos Índios“ (Art. 231 e 232). Essa luta, porém não
terminou. Trata-se de concretizar o que está escrito aí.
A luta mais desgastante, no entanto, é sem dúvida a que travamos contra a hidrelétrica
Belo Monte, que já dura tantos anos.
IHU On-Line – Estamos na época do Advento. O que esta época de natividade, como
nascimento de Jesus, pode trazer de reflexão para os dias de hoje, para os
governantes, especialmente em relação a Belo Monte?
Dom Erwin Kräutler – Eu não sei se o sentido profundo do Advento e Natal mexe
com o coração de nossos governantes, ministros e outros membros do governo.
Talvez nem falem mais em Natal. Preferem substituir a lembrança do Nascimento
de Jesus com um termo mais secularizado: “Festas de Fim de Ano“. E muito menos
sei se esta gente, ouvindo eventualmente o “Noite Feliz“, se lembra das
famílias expulsas de suas terras por causa de Belo Monte. Essas famílias não
experimentam nada de noite feliz, enquanto os responsáveis pela sua desgraça se
banqueteiam em confraternizações com as mais finas iguarias, regadas a bebidas
seletas.
IHU On-Line – O que a experiência de Jesus Libertador pode ensinar e inspirar a
prática cristã de hoje?
Dom Erwin Kräutler – Responder a essa pergunta equivaleria a uma dissertação
sobre os fundamentos e toda a história da
Teologia
da Libertação e sua contribuição valiosa para a Igreja na Amazônia, especialmente
para as Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, que continuam sendo o chão
concreto em que esta forma de reflexão teológica até hoje está dando seus
frutos e que gerou seus mártires. Precisaria também desmontar todos os
mal-entendidos a respeito desta teologia, disseminados pelo Brasil e mundo
afora, especialmente em ambientes em que se fecham os olhos e se tapam os
ouvidos diante das injustiças de um sistema desumano, excludente, opressor e de
violências estruturais que causam a morte de tantos homens, mulheres e crianças
e do meio ambiente em que vivem.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Dom Erwin Kräutler – Sim, votos de um abençoado Advento e Santo Natal do Senhor.
Que Deus nos conceda sua graça e paz, neste Natal, durante o Ano Novo e sempre.