Os Primeiros Cristãos sabiam.
Sua fé num Deus crucificado só podia ser vista como um escândalo e uma
loucura. disso. Quem teve a ideia de dizer algo tão absurdo e horrendo
de Deus? Nunca religião alguma se atreveu a confessar algo semelhante.
Sem dúvida, a primeira coisa que todos nós descobrimos no Crucificado
do Gólgota, torturado injustamente até à morte pelas autoridades
religiosas e pelo poder político, é a força destruidora do mal, a
crueldade do ódio e o fanatismo da justiça. Mas, precisamente ali, nessa
vítima inocente, nós, seguidores de Jesus, vemos Deus identificado com
todas as vítimas de todos os tempos.
Despojado de todo poder dominador, de toda beleza estética, de todo
êxito político e de toda auréola religiosa, Deus se nos revela, no mais
puro e insondável de seu mistério, como amor e somente amor. Por isso
padece conosco, sofre nossos sofrimentos e morre nossa morte.
Este Deus crucificado não é o Deus poderoso e controlador, que trata de
submeter seus filhos e filhas buscando sempre sua glória e honra. É um
Deus humilde e paciente, que respeita até o fim nossa liberdade, mesmo
que nós abusemos sempre de novo de seu amor. Ele prefere ser vítima de
suas criaturas a ser seu verdugo.
Este Deus crucificado não é tampouco o Deus justiceiro, ressentido e
vingativo, que ainda continua perturbando a consciência de não poucos
crentes. Deus não responde ao mal com o mal. "Em Cristo está Deus, não
levando em conta as transgressões dos seres humanos, mas reconciliando o
mundo consigo" (2Cor 5,19). Enquanto nós falamos de méritos, culpas ou
direitos adquiridos, Deus está nos acolhendo a todos com seu amor
insondável e seu perdão.
Este Deus crucificado se revela hoje em todas as vítimas inocentes.
Está na cruz do Calvário e está em todas as cruzes onde sofrem e morrem
os mais inocentes: as crianças famintas e as mulheres maltratadas, os
torturados pelos verdugos do poder, os explorados por nosso bem-estar,
os esquecidos por nossa religião.
Nós cristãos continuamos celebrando o Deus crucificado, para não
esquecer nunca o "amor louco" de Deus pela humanidade e para manter viva
a lembrança de todos os crucificados. Ê um escândalo e uma loucura. No
entanto, para nós que seguimos a Jesus e cremos no mistério redentor que
se encerra em sua morte, é a força que sustenta nossa esperança e nossa
luta por um mundo mais humano.
O QUE FAZ DEUS NUMA CRUZ?
De
acordo com o relato evangélico, os que passam diante de Jesus
crucificado sobre a colina do Gólgota zombam dele e, rindo de sua
impotência, lhe dizem: "Se és Filho de Deus, desce da cruz': Jesus não
responde à provocação. Sua resposta é um silêncio carregado de mistério.
Precisamente porque Ele é Filho de Deus, permanecerá na cruz até sua
morte.
As perguntas são inevitáveis: Como é possível crer num Deus crucificado
pelos seres humanos? Damo-nos conta do que estamos dizendo? O que faz
Deus numa cruz? Como pode subsistir uma religião fundada numa concepção
tão absurda de Deus?
Um "Deus crucificado" constitui uma revolução e um escândalo que nos
obriga a questionar todas as ideias que nós, os seres humanos, nos
fazemos da divindade. O Crucificado não tem o rosto nem os traços que as
religiões atribuem ao Ser supremo.
O "Deus crucificado" não é um ser onipotente e majestoso, imutável e
feliz, alheio ao sofrimento dos seres humanos, mas um Deus impotente e
humilhado, que sofre conosco a dor, a angústia e até a própria morte.
Com a cruz, ou termina nossa fé em Deus ou nos abrimos a uma compreensão
nova e surpreendente de um Deus que, encarnado em nosso sofrimento, nos
ama de maneira incrível.
Diante do Crucificado começamos a intuir que Deus, em seu mistério
último, é alguém que sofre conosco. Nossa miséria o afeta. Nosso
sofrimento o salpica. Não existe um Deus cuja vida transcorre, por assim
dizer, à margem de nossas penas, lágrimas e desgraças. Ele está em
todos os Calvários de nosso mundo.
Este "Deus crucificado" não permite uma fé frívola e egoísta num Deus
posto a serviço de nossos caprichos e pretensões. Este Deus nos coloca
olhando para o sofrimento e o abandono de tantas vítimas da injustiça e
das desgraças. Com este Deus nos encontramos quando nos aproximamos de
qualquer crucificado.
Nós cristãos continuamos dando todo tipo de rodeios para não topar com o
"Deus crucificado". Aprendemos, inclusive, a levantar nosso olhar para a
cruz do Senhor, desviando-o dos crucificados que estão diante de nossos
olhos. No entanto, a maneira mais autêntica de celebrar a paixão do
Senhor é reavivar nossa compaixão para com os que sofrem. Sem isto,
dilui-se nossa fé no "Deus crucificado" e abre-se a porta a todo tipo de
manipulações.
DEUS NÃO É UM SÁDICO
Não são poucos os cristãos que entendem a morte de Jesus na cruz como
uma espécie de "negociação" entre Deus Pai e seu Filho. Segundo esta
maneira de entender a crucifixão, o Pai, justamente ofendido pelo pecado
dos seres humanos, exige para salvá-los uma reparação, que o Filho lhe
oferece entregando sua vida por nós.
Se fosse assim, as consequências seriam gravíssimas. A imagem de Deus
Pai ficaria radicalmente pervertida, porque Deus seria um ser
justiceiro, incapaz de perdoar gratuitamente; uma espécie de credor
implacável, que não pode salvar-nos se não for saldada previamente a
dívida contraída com Ele. Seria difícil evitar a ideia de um Deus
"sádico': que encontra no sofrimento e no sangue um "prazer especial",
algo que lhe agrada de maneira particular e o leva a mudar de atitude
para com suas criaturas.
Esta maneira de apresentar a cruz de Cristo exige uma profunda revisão.
Na fé dos primeiros cristãos, Deus não aparece como alguém que exige
previamente sangue para que sua honra fique satisfeita, e Ele possa
assim perdoar. Pelo contrário, Deus envia seu Filho somente por amor e
oferece a salvação quando ainda éramos pecadores. Jesus, por sua vez,
não aparece nunca procurando influir sobre o Pai com seu sofrimento, a
fim de compensá-lo e assim obter dele uma atitude mais benévola para
com a humanidade.
Então, quem quis a cruz e por quê? Certamente não o Pai, que não quer
que se cometa crime algum, e menos ainda contra seu Filho amado, e sim
os seres humanos, que rejeitam Jesus e não aceitam que Ele introduza no
mundo um reinado de justiça, de verdade e de fraternidade. O que o Pai
quer não é que matem seu Filho, mas que seu Filho viva seu amor ao ser
humano até às últimas consequências.
Deus não pode evitar a crucifixão, porque para isso deveria destruir a
liberdade dos seres humanos e negar-se a si mesmo como Amor. O Pai não
quer o sofrimento e o sangue, mas não se detém nem sequer diante da
tragédia da cruz e aceita o sacrifício de seu Filho querido unicamente
por amor insondável para conosco. Assim é Deus.
MORREU COMO HAVIA VIVIDO
Como viveu Jesus suas últimas horas? Qual foi sua atitude no momento
da
execução? Os evangelhos não se detêm a analisar seus sentimentos.
Simplesmente lembram que Jesus morreu como havia vivido. Lucas, por
exemplo, quis destacar a bondade de Jesus até o final, sua proximidade
aos que sofrem e sua capacidade de perdoar. De acordo com seu relato,
Jesus morreu amando.
No meio da multidão que observa a passagem dos condenados a caminho da
cruz, algumas mulheres se aproximam de Jesus chorando. Não podem vê-lo
sofrer assim. Jesus "volta-se para elas" e as olha com a mesma ternura
com que as havia olhado sempre: "Não choreis por mim, chorai por vós e
por vossos filhos". Assim caminha Jesus para a cruz: pensando mais
naquelas pobres mães do que em seu próprio sofrimento.
Faltam poucas horas para o final. Da cruz só se ouvem os insultos de
alguns e os gritos de dor dos justiçados. De repente, um deles se dirige
a Jesus: "Lembra-te de mim': A resposta de Jesus é imediata:
"Asseguro-te: hoje estarás comigo no paraíso': Ele sempre fez a mesma
coisa: suprimir medos, infundir confiança em Deus, transmitir esperança.
E continua fazendo isso até o final.
O momento da crucifixão é inesquecível. Enquanto os soldados o vão
pregando no madeiro, Jesus diz: "Pai, perdoai-Ihes, porque não sabem o
que estão fazendo': ssim é Jesus. Assim viveu sempre: oferecendo aos
pecadores o perdão do Pai, mesmo que não o mereçam. De acordo com Lucas,
Jesus morre pedindo ao Pai que continue abençoando os que o crucificam,
que continue oferecendo seu amor, seu perdão e sua paz a todos,
inclusive aos que o estão matando.
Não é estranho que Paulo de Tarso convide os cristãos de Corinto a
descobrir o mistério que se encerra no Crucificado: "Em Cristo Deus não
está levando em conta as transgressões dos seres humanos, mas
reconciliando o mundo consigo". Assim está Deus na cruz: não nos
acusando de nossos pecados, mas oferecendo-nos seu perdão.
COM OS CRUCIFICADOS
O
mundo está cheio de igrejas cristãs presididas pela imagem do
Crucificado, e está cheio também de pessoas que sofrem, crucificadas
pela desgraça, pelas injustiças e pelo esquecimento: doentes privados de
cuidado, mulheres maltratadas, anciãos ignorados, meninos e meninas
violentados, emigrantes sem documentos nem futuro. E gente, muita gente
afundada na fome e na miséria no mundo inteiro.
É difícil imaginar um símbolo mais carregado de esperança do que essa
cruz plantada pelos cristãos em toda parte: "memória" comovente de um
Deus crucificado e lembrança permanente de sua identificação com todos
os inocentes que sofrem de maneira injusta em nosso mundo.
Essa cruz, erguida entre as nossas cruzes, nos lembra que Deus sofre
conosco. Deus se condói da fome das crianças de Calcutá, sofre com os
assassinados e torturados do Iraque, chora com as mulheres maltratadas
diariamente em seu lar. Não sabemos explicar a raiz última de tanto mal.
E, mesmo que o soubéssemos, não nos adiantaria muito. Só sabemos que
Deus sofre conosco. Não estamos sós.
Mas os símbolos mais sublimes podem ficar pervertidos se não
recuperarmos sempre de novo seu verdadeiro conteúdo. O que significa a
imagem do Crucificado, tão presente entre nós, se não vemos marcados em
seu rosto o sofrimento, a solidão, a tortura e a desolação de tantos
filhos e filhas de Deus?
Que sentido tem trazer uma cruz sobre nosso peito se não sabemos
carregar a mais pequena cruz de tantas pessoas que sofrem junto a nós? O
que significam nossos beijos no crucificado se não despertam em nós o
carinho, a acolhida e a aproximação aos que vivem crucificados?
O Crucificado desmascara como ninguém nossas mentiras e covardias. A
partir do silêncio da cruz, Ele é o juiz firme e manso do aburguesamento
de nossa fé, de nossa acomodação ao bem-estar e de nossa indiferença
diante dos que sofrem. Para adorar o mistério de um Deus crucificado não
basta celebrar a Semana Santa; é necessário, além disso, aproximar-nos
mais dos crucificados, semana após semana.
(Pagola, José Antonio, O caminho aberto por Jesus, Vozes, v2012, p.341-347)
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